O AMOR DE TRANCA RUAS
José de
Oliveira, conhecido como Zé em todo vilarejo, era um homem de 44 anos e de
estatura média, desgastado pelo tempo que se passou rápido demais.... Teve uma
vida muito agitada e sem qualquer estrutura familiar. Zé nunca soube o que
realmente era uma mãe por ter sido criado pelo próprio vilarejo em que viveu
desde que se conheceu por gente.
Nunca soube de
seus pais biológicos e sobreviveu de trabalhos manuais forçados desde pequeno.
Esteve pouco tempo na escola, mas sabia se resolver com todas as lições que a
vida tinha a lhe passar.
Dona Maria era
o nome da senhora que o acolheu quando ainda moleque, ela trabalhava em casa de
madames famosas e de renome, mas a sua realidade era dura e muito diferente das
casas que limpava. O que tinha para comer em casa quase não dava para o
sustento, mas seu coração era enorme e ela sempre conseguia enxergar alguém
numa situação pior e precisando de ajuda mais do que ela mesma.
Anos se
passaram e Zé tornou-se homem feito duma natureza bruta e primária. Era muito
mulherengo, sempre apelando aos seus charmes e, demasiadamente vaidoso,
conseguia fácil, fácil uma mulher quando queria.
Numa outra
ocasião, lá estava ele no bar da esquina, conversando com seus amigos, tirando
uma com a cara de todos e sem largar a sua cervejinha, quando seus grandes
olhos brilharam e pousaram como águia numa verdadeira deusa negra, linda que
passou pela porta do bar, levando, não só o olhar de Zé, mas de todos que
estivessem em seu caminho. Um pensamento, apenas, instalou-se na cabeça de Zé:
ele tinha que jogar seu charme naquela linda dama! E não se contendo foi de
encontro à moça:
– Olá,
minha deusa africana – disse Zé em tom meloso e pidão, sentando ao
lado da moça no balcão.
– Sim? Em
que posso ajudar? – Retrucou a moça, ignorando a presença de Zé por
completo.
– Como é
sua graça, minha linda? – Zé mantinha os olhos fixos naquela que
poderia ser sua presa.
– Camilla – a
moça abriu um sorriso de canto.
– Lindo
nome, minha moça.... Lindo nome! Mas... você não é daqui, mudou
recentemente?
– É, mas
olha, a história é bem complicada e estou aqui para construir uma nova vida.
Isso é tudo.
– Tudo
bem, tudo bem. Já não está mais aqui quem disse. Olhe, não quero que lembre de
nada frustrante, minha linda...
– Desculpe,
mas eu só quero deixar o passado onde ele pertence.
– Claro,
eu te entendo. Mas não se preocupe, o Zé aqui, ao seu dispor, está aqui pra
mudar o seu dia.
– Sim,
obrigada por respeitar isso – Camilla esboçou um leve sorriso.
Após horas de
conversa, ele a convidou para conhecer sua casa.
– Obrigada,
mas hoje não poderei aceitar o convite. Hoje é...
Zé interrompeu
a moça e agarrou-lhe o braço. Algumas poucas pessoas até olharam, mas logo
voltam às suas conversas.
– Eu
insisto, ó, minha deusa!
– Por
favor, me solte! – Camilla tentava puxar seu braço para longe das
mãos de Zé, mas sem sucesso.
– Ah, mas
vamos pelo menos para um lugar mais reservado. Qual é? – Zé continuou segurando
o braço de Camilla, com mais força.
– Já lhe
disse que não – rosnou Camilla. – Agora, por favor, me
solte!
– Meu
docinho, eu preciso de você em minha vida – ao dizer isso, Zé estava
com seus lábios quase colados nos ouvidos de Camilla.
No melhor que
aprendeu a fazer numa situação dessas, Camilla, desesperada e assustada,
arremessou sua mão na forma de um tapa, bem no meio do rosto daquele que a
segurava. Quando percebeu que sua reação causara um choque bom o suficiente
para que aquele homem largasse de seu braço, saiu correndo em direção à saída
do bar.
Ainda tentando
se recompor, Zé voltou a sentar em sua cadeira e pensou se podia fazer algo
para conquistar tão linda dama. Mas como pode, alguém que não conheceu a
simplicidade de um sentimento como o amor, que era Zé, compreender a melhor
forma de conquistar a moça de seus pensamentos? Seus relacionamentos eram
resumidos a rapidinhas em lugares sujos e noites de álcool e promiscuidade.
Onde, neste meio, o amor poderia brotar?
Alguns dias se
passaram e Zé ainda se perguntava do porquê tinha levado um tapa, sem nem ao
menos ter conseguido um beijo daquela mulher. Para qualquer um aquilo poderia
ser normal, mas não para ele, que sempre conseguiu as moças das quais ele
disputava com os outros homens do bar. Era difícil aceitar aquilo... O
pensamento rondava sua mente e à medida que mais dias passaram, o que era uma
ideia tornou-se obsessão.
Dois de
fevereiro é um dia de celebração em homenagem à majestosa e divina Deusa do
Mar, criatura do folclore do vilarejo e que representa um símbolo de força,
justiça e prosperidade. Neste dia Zé decidiu ir à praia e contemplar sua magnitude
e fazer algumas oferendas. Quando chegou, logo tirou as sandálias, colocou os
pés na areia e se aproximou do mar, a brisa batia em seu rosto. Fechou os olhos
por um instante e lembrou de quando era mais novo e do quão gostava de ir
naquela praia para descansar seu corpo suado aos finais de semana junto de Dona
Maria e seu finado marido, Joaquim.
Foi entrando
na água, ultrapassou a margem de segurança. Deixou que a água chegasse quase a
altura de seu peito e então entoou para a divindade marítima:
– Ó,
minha mãe, espero que você consiga uma mulher pra mim, minha mãezinha. Eu tô
cansado dessa minha vida sozinho e eu gostaria muito do amor daquela mulher do
bar. Roga por mim, minha mãe, eu me apaixonei e não consigo enxergar a vida sem
ela – enquanto dizia isso, foi entregando alguns presentes e
sacrifícios para a grande Deusa do Mar.
E, após deixar
suas oferendas e voltar para a beira da praia, ele descansou numa pedra onde
fazia uma grande sombra e caiu no sono.
Zé estava sentado, encostado na pedra, contemplando
o mar quando ouviu uma serena canção vindo de uma mulher negra, muito alta e de
lindos olhos claros. Achou que viu uma miragem num oásis. A mulher nem parecia
que encostava no chão enquanto se movimentava e foi se aproximando mais e mais.
Prestou mais atenção e a mulher vinha com uma mão estendida a ele, como se o
quisesse puxar, foi chegando até que tocou a sua mão.
– Olhe só, mas tu não és mesmo um homem
de sorte, meu amor? – Disse a linda mulher, já não mais tocava Zé, mas
mantinha-se acima do chão na frente dele.
– Mas espere, é você mesmo? Eu sempre
lhe trouxe oferendas, alimentando o que eu acreditei ser uma esperança falsa e
solitária. E você... em todo este tempo, não posso crer, você nunca deu um
sinal sequer de que estava aqui, minha deusa. – Acontece que o choque de Zé se
dava ao fato de que a tal mulher era a Deusa do Mar. Aquela que, desde criança,
Zé orava e pedia por proteção. Levava oferendas sempre que lhe sobrava algo.
– Sim, minha criança, sou eu. Mas te
enganas no que dizes, pois sempre estive contigo. Fui ou não fui eu, aquela que
sempre lhe ajudou a se safar pelos furtos do pão nosso de cada dia?
Neste instante Zé esqueceu que era já um
homenzarrão, via-se como a criança desamparada e desolada de mais de 30 anos
atrás.
– Não, eu nunca me esqueci, minha
mãe... sempre agradeci, mas você poderia ao menos ter se mostrado a mim. – Zé
falou com certo medo, mas também com muito respeito.
A Deusa do Mar riu, a sua risada pareceu
provocar uma leve agitação no mar, uma brisa soprou mais forte lambendo o rosto
de Zé e trazendo aquele famoso cheirinho de chuva. Era gostoso. A Deusa segurou
mais uma vez na mão de Zé e depois a soltou.
Zé sentiu algo que não estava ali antes,
então quando abriu sua mão viu um colar com um búzio no meio. Olhou um pouco
confuso para a entidade que lhe sorriu e disse:
– Escute bem, jamais esqueças que estou
com você. Leve isto pra onde fores e encontrarás teu amor, minha criança.
Mas tome cuidado com o que pedes, pois podes não estar preparado para pagar o
preço.
Zé abriu os
olhos, estava encostado à sombra da pedra. Tomou seus sentidos e sentiu algo em
sua mão esquerda. Lá estava o colar com o búzio, do mesmo jeito que a Deusa lhe
dera. Ele então o pendurou em seu pescoço, beijou o búzio e agradeceu numa
prece.
Passaram-se
alguns meses desde o encontro divino e Zé sempre pedia que tudo ficasse bem,
mas tudo parecia correr rápido demais e ele sem tempo para as respostas das
perguntas que surgiam em sua mente. Até que decidiu dar um tempo a si mesmo,
ele andava trabalhando feito um condenado e mal tinha tempo de ir ao bar beber
com amigos e jogar conversa fora.
Então, numa
noite de São João, 13 de junho, Zé estava perambulando pela rua, ainda sem um
rumo. Todos do vilarejo estavam dançando e cantando ao som da música e ele só
pensava em beber para esquecer um pouco dos problemas, andava distraído em meio
a tanta festa, a cabeça não saia da bebida. Até que ele para de andar repentinamente
e avista uma moça de cabelos crespos e bem negros, com argolas que brilhavam
lindamente num dourado chamativo pendendo de suas pequenas orelhas, e que Zé
olhava tão fixamente que podia jurar enxergar a alma da resplandecente moça.
Seu batom era de um tom forte e provocativo, e deixava um ar de poder, de
cobiça e que quem passasse por perto daquele anjo não desejaria mais nada, além
de um beijo seu.
Zé saiu de sua
hipnose momentânea e foi se aproximando da moça, ia cauteloso, com medo que
aquela miragem desaparecesse, porém chegou perto o suficiente para reconhecer de
quem se tratava.
– Você! –
apontou Zé para a moça, o dedo parado no ar e o queixo caído.
Dito e feito!
A moça também reconheceu Zé, espantada ela tentava fugir dali. E Zé ia atrás
dela, não podia perder essa chance de se explicar, sabia que não teria uma
outra oportunidade de se redimir por aquele dia no bar. Finalmente quando ele a
alcançou:
– Tenho
que ir, me desculpe. – Camilla disse isso já se afastando novamente de Zé.
– Minha
moça, por favor, dê a esse pobre diabo a chance de se desculpar... Eu sou
sozinho, não agi bem com você, tentei te conquistar, mas fui rude. Por favor,
me dê uma chance.
– Homem,
mas eu já lhe disse que eu não posso, pois tenho problemas com meu...
Ela foi
interrompida com um beijo em sua boca, forçado, à princípio, mas logo relaxou
após um afago em seu cabelo. Ele podia ser o cara mais cafajeste dali, mas ele
sabia ser carinhoso.
– Mas eu
sabia, sua vadia! – O beijo é partido ao ouvirem de longe uma voz rasgada
seguida de um tiro no ar.
As pessoas
começaram a correr e a se esconder, em pânico, elas gritavam e tentavam chorar sem
fazer muito barulho para não chamar atenção de quem quer que tinha disparado
aquele tiro.
– Eu te
avisei. E agora ele está aqui! – Camilla, de anjo, virou fantasma de tão pálida.
– Quem
está aqui, minha deusa? – quis saber Zé, ainda sem entender nada.
Até que ouviu uma voz ribombar atrás de si.
– Então é
com este imundo que você anda saindo, é vagabunda?! – Antônio, ex-marido de
Camilla, surgiu com uma espingarda na mão.
– Não,
não... por favor! Não é nada disso que você está pensando – suplicou Camilla já
em lágrimas.
– Deixe a
moça em paz, seu nojento! – Zé reuniu todas as suas forças e gritou para
Antônio.
– Minha
briga não é com você, não, cabra safado! – Antônio empurrou Zé para que pudesse
chegar em Camilla.
– Por
favor, nos deixe. Vá embora, me deixe resolver isso sozinha! – Camilla gritou
isso para Zé, enquanto ia enfrentar Antônio. Mas não tinha choro e nem vela, Zé
não ia arredar o pé dali e deixar sua dama sozinha com aquele monstrengo.
A gritaria
ainda se ocorria entre o trio e entre as pessoas apavoradas. Socos e pontapés
partiam para todos os lados. A coisa acontecia de tal forma que por momentos
era difícil dizer quem era quem. Mas então houve um segundo tiro que trouxe fim
ao embate.
Zé estava
caído e ferido no chão, sangrava muito. Antônio empunhava sua espingarda, ainda
saindo fumaça do cano. Que covardia!
Camilla correu
ao ex-marido e mais uma vez tentou conversar com ele. Suplicou, chorou, até se
ajoelhou, mas houve um berro. O berro do cano da espingarda de Antônio uma
terceira vez. E Camilla também estava no chão, não protestou, o tiro havia sido
em sua cabeça. Era o seu fim.
Todos no vilarejo
sabiam que Antônio era um homem muito cruel e sem escrúpulos. Ele não era de
lá, ia de passagem vez ou outra a serviço. Mas desta vez apareceu procurando
sua esposa, que fugiu após uma briga em que lhe dera uma surra.
Camilla era
muito esperta e não tinha ido à cidade para procurar homem, queria distância
disso na verdade. Teve um azar danado ao encontrar Zé, um homem que não teve
amor em sua vida, sozinho e que apesar do mau começo, fez de tudo para ficar
com ela. Ele não tinha tato, suas palavras e gestos eram rudes, mas Camilla,
quando o beijou sentiu-se amada e protegida.
Antônio contemplava
a cena. Respirava forte, alguns cortes em seu rosto mostravam que Zé e Camilla
tinham lutado com unhas e dentes para se defender. Quando teve um lampejo do
que tinha feito, saiu fugido dali o mais rápido que pôde.
Em meio a
tanta escuridão e quietude depois da briga, Zé recobrou os sentidos e gritou
por horas a fio pedindo ajuda, mas sem nenhuma resposta. Não se conformava que
ninguém tinha ido ali nem que fosse só de curiosidade. Após cansar-se, ele
apenas se deitou e esperou acontecer um milagre. Não enxergava o corpo de
Camilla naquele breu. Ele mais uma vez era aquele garotinho se escondendo do
dono da padaria, depois de ter roubado um pão para não morrer de fome. Ele
estava assustado, enfiado num buraco escuro qualquer, rezando para que alguém
lhe ajudasse, mas igual àqueles tempos, nada aconteceu. Pelo menos não de
imediato. Descansou um pouco e recobrou seu fôlego e voltou a gritar por ajuda,
chamou até sua garganta doer e quase ficar sem voz, finalmente escutou uma voz
de longe, calma e serena:
– Está
pronta, minha criança? Eu vim buscá-lo!
– Quem
está aí? – Perguntou Zé, cujo a vista estava embaçada.
– Ora
minha criança, mas não me reconheces, novamente?
– Desculpe,
mas estou ferido e cansado, minha visão me impede de reconhecer alguém – sabia que
não podia ser Camilla, pois em meio a sua dor a viu morrer. Ele sem poder fazer
nada, lágrimas desciam de seus olhos enquanto assistiu Antônio fugir.
De súbito era
como se alguém estivesse tapando os olhos de Zé e então tirasse as mãos, pois
um clarão de luz veio eliminando toda escuridão. Ele pisca algumas vezes,
recobrando totalmente a sua visão e tentando achar o corpo de Camilla. Ele
então a vê e ela estava linda, num belo vestido azul que parecia que ela tinha
trazido o mar para a terra firme. Era uma visão realmente esplêndida.
– Ó,
minha mãe! Obrigado por não me abandonar! – Gritou Zé, com lágrimas nos olhos e
se arrastando aos pés da Deusa do Mar.
– Estive
de olho em ti e parece que não andaste sendo um homem muito bom, não é mesmo? –
mesmo passando um corretivo, a Deusa do Mar não perdia sua serenidade e graça.
– Eu juro
que tentei, minha mãe! Mas tudo o que faço parece dar errado! – Zé tentou
agarrar-se nas barras do vestido da Deusa, mas foi como tentar segurar água.
– Agora o
que está feito não pode ser desfeito. E para tudo há um preço, minha criança. Eu
te alertei da outra vez e vim para leva-lo ao seu destino.
Chamas
brotaram do chão, serpenteando até chegar a Zé. As chamas lhe alcançaram e
engoliram até que ele ficasse completamente em chamas, deixando apenas os ossos
e sua carne torrada no chão.
Enquanto as
chamas agiam, ele se contorceu, tremeu, uivou e babou, como qualquer pessoa em
chamas teria feito por causa da dor. Mas dor não havia ali. A dor é uma
característica dos vivos e Zé já estava morto há algumas horas. Ele demorou um
pouco, mas se deu conta disso. As chamas cessaram e ele levantou do chão
deixando ali a sua carcaça, ficou perplexo e encarou seu corpo dizimado pelas
chamas, quando terminou encarou a Deusa do Mar.
– Teu
trabalho agora é nas trevas. Terás que proteger todos os seus afilhados e irás
cortar todo o mal pela raiz. Aqui estão seu tridente, sua cartola e sua
vestimenta – a Deusa do Mar materializou tudo isso e entregou a Zé, que quando
tomou em mãos, num piscar de olhos estava vestido e de tridente na mão. – Daqui
pra frente serás conhecido como Tranca Ruas das Almas. Já pode ir.
A Deusa do Mar desapareceu e no instante seguinte chamas brotaram mais uma
vez do chão, mas desta vez elas não queimaram, elas o chamaram. E ele as
abraçou como uma velha amiga.
História original: História Ilustrada "O Amor de Tranca Ruas" de Teo Santos. (Link para a HQ em breve).
Ilustração de Teo Santos.
Conto escrito, editado e revisado por Júnior Cassis, baseado na HQ "O Amor de Tranca Ruas"
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