Esquadrão Geriátrico
Ivo
levantou-se aquela manhã e não olhou o despertador, não o olhou porque não possuía
um, mas pensou que se tivesse poderia olhar e não perder o horário do café da
manhã na casa de repouso. Ivo ficava era muito fulo da vida, pra falar a
verdade, pois quando chegava ao refeitório toda a camada boa do mingau de aveia
já tinha sido pega por seus outros colegas. Aquilo despertava uma ira peculiar
em Ivo.
Chegando
atrasado, seu único conforto era conseguir sentar mais reservado nas mesas do
refeitório e Sônia, uma das cozinheiras sempre guardava um biscoitinho integral
para ele. Apesar que não pudesse mastigar mais com toda a sua capacidade, Ivo,
ainda assim, gostava da sensação de comer algo mais sólido. Terminou de tomar
seu café tardio e foi ao pátio. Alguma coisa no ar estava diferente, ele não
sabia ao certo o que, talvez fosse a Emengarda, todos sabiam das capacidades “odorísticas”
de Emengarda. Tossiu. Se sentiu bem. Em seguida tossiu novamente. Maldito
biscoito de fibras.
Ivo
sentia-se particularmente sozinho, muito embora alguns de seus melhores amigos,
se é que podia chama-los assim, também estavam na mesma casa de repouso.
Resolveu ir ao salão de jogos e tentar uma conversa com Plínio.
O
salão de jogos, o que dizer? Ivo não era muito dado ao convívio social, mas era
imbatível no xadrez. Por trás daqueles óclinhos ainda estava uma mente ativa.
Bem ativa, admitiu para si mesmo naquela hora. Avistou Plínio, com uma certa
sofreguidão, puxou uma cadeira e sentou ao seu lado.
Plínio
servia de juiz para uma competição entre as tetéias daquela casa de repouso.
Berenice e Célia encontravam-se numa competição para ver quem tricotava um
cachecol mais rápido. E, devo dizer, que a disputa era acirrada, pois no passo
que Berenice agitava suas agulhas, Célia fazia o mesmo, vez ou outra passando
as linhas sobre as cabeças para poder desenrolar a linha no chão. Plínio estava
com um relógio de bolso em suas mãos e deveria estar cronometrando para ver
quem terminaria o cachecol mais longo em menos tempo, porém infelizmente nem
Célia e nem Berenice saberiam, pois Plínio pegara no sono. Não foi até que Ivo
chegasse ao seu lado e chamasse por ele que tinha acordado. Com um sonoro
ronco, desses que a gente dá quando meio acorda e meio ainda está dormindo, Ivo
aos poucos conseguia a atenção de Plínio.
Berenice
levantou de um salto e veio em nossa direção:
- Bonito, que bonito, não?
Dormindo de novo Plínio? Poxa, assim como vamos saber quem ganhou a competição?
Nesse
momento Célia veio andando o mais rápido que a idade lhe permitiu, de cachecol
na mão e toda sorridente para Plínio. Algumas senhoras do recinto tinham um
pouco de inveja de Célia, pois sua filha mais velha era dentista e arranjou uma
dentadura e tanto para mãe. Há boatos que Célia uma vez no pátio sorriu para um
possível pretendente e a luz do sol refletiu tão forte nos olhos do senhor que
ele caiu do banco em que sentava, foi levado à enfermaria, mas nunca mais foi
visto. Mas chega de boatos.
- E então Plínio? Quem é que
ganhou a competição? – disse Célia entredentes, não por vontade, mas a
dentadura, esqueci de dizer, era um pouco grande para sua boca.
- Ora meninas, vamos! As duas
fizeram um ótimo trabalho! O que você acha Ivo? Me ajude aqui, meu rapaz. Estou
numa boca de sinuca.
Célia
virou com seu sorriso, um pouco assustador, para Ivo e Berenice o olhou com um
olhar inquisitivo.
- Por quê não damos um empate
aqui? – disse Ivo.
Berenice
bufou e teve que levar as mãos rapidamente à boca para segurar sua dentadura no
lugar. Célia continuou sorrindo, mas aquilo não queria dizer nada na verdade,
pois afinal de contas, ela estava sempre sorrindo.
- Pois eu digo isto, um empate! É
o que é. – disse Plínio.
Contrariada, Berenice deixou o recinto, batendo o pé e a bengala, o mais audível que pôde,
em forma de protesto. Célia pareceu conformada. Foi dar um abraço de
agradecimento em Plínio, ao abaixar travou sua coluna e precisou da ajuda dos enfermeiros
para que voltasse a se colocar de volta no lugar.
Agora
que a tal da competição tivera um fim Ivo finalmente teria a atenção de Plínio.
- Escuta Plínio, estava querendo
lhe falar, será que podemos levar um lero?
- Mas é claro, meu chapa. Qual é
a jogada?
- Bem, não há uma jogada. Pelo
menos não ainda. Merda... O que eu quero dizer é, você não se cansa dessa vida
em que levamos? Eu queria mais, eu já tive mais. Entende?
Plínio
fitava Ivo com atenção. Tomou um longo e profundo suspiro, deu uma leve
borrifada no aparelho de asma. Tossiu. E virou-se para Ivo.
- Olhe Ivo, é claro que eu tenho
saudades da nossa época dourada. Mas isso é coisa de outro tempo. Não passa um
dia que eu não me lembre dos bons tempos, mas a minha agora é essa. Aqui, essa
casa de repouso.
- Mas você não sente... um
comichão?
- Ivo, meu rapaz, aqui se alguém
não sentir um comichão que seja, significa que já partimos pro outro lado. –
Plínio riu, mas teve um acesso de tosse logo em seguida.
- Ora, pare de troçar comigo
Plínio. Sei que você sabe ao que eu me refiro. Aquela inquietude, vamos, me
ajude aqui. – disse Ivo, provocando com um olhar.
- É claro que eu sei do que você
se refere, mas eu já lhe disse. O meu tempo já passou, deixa agora pra essa
molecada ai. – Plínio guardou o relógio no bolso, deu mais um suspiro. – Ivo, e
além do mais o que é que você espera? Estamos cercados de médicos e
enfermeiras, jamais nos deixariam sair.
Ivo
ficou com a voz de Plínio martelando sua cabeça, mas se recusava a aceitar
aquilo como único destino. Mesmo não estando em seu ápice Ivo então começou
a maquinar um plano em sua cabeça. Veriam, ele estava velho, mas não morto.
Já
no dia seguinte começou a colocar seu plano em ação. Ivo teria de começar pela
parte mais difícil. Toda manhã, após o café, uma das enfermeiras ia em seu
quarto para lhe levar a medicação, mas ela não ia embora até que o paciente a tomasse toda. Ivo dependia de um remédio para tratar
especificamente de sua ansiedade, não mais para Ivo, mas ele sabia que quem o
tomasse seria acometido por um sono muito forte e ai estava seu passaporte para
fora daquele lugar. Ivo apenas tomava
sua medicação dia sim, dia não. Nos dias que não ingeria, fingia engolir o
remédio, porém o colocava embaixo da sua língua. Não que precisasse de muito
trabalho para esconder o comprimido, pois a enfermeira não parecia preocupada,
mas achou melhor tomar precaução. Quando decidiu que já tinha comprimidos suficientes,
partiu para a fase 2. Ao invés de comer os biscoitinhos que Sônia lhe dava,
começou a guarda-los, uns dois ou três bastariam.
Num
dos dias foi à cozinha e pediu por um copo de leite, disse que estava sentindo
uma fraqueza e que um copo de leite lhe cairia bem. Assim a cozinheira foi até
a dispensa e pegou o leite e lhe serviu. Ivo disse que levaria ao quarto e iria
tentar repousar um pouco. A cozinheira quis chamar uma enfermeira, mas Ivo
recusou, disse que um copo de leite e um pouco de sono lhe fariam bem. Teve de
conter sua animação, mas ele sabia que aquele era o dia, ou melhor, a noite.
Chegando
em seu quarto Ivo pegou as bolachinhas e começou a tentar recheá-las com seus
comprimidos para ansiedade e ia tentando dar liga com o leite. Não ficara perfeito,
mas estava dando certo. Ivo até se permitiu dar uma risadinha, como se fosse
uma criança aprontando alguma peripécia.
Perfeito!
Olhou para sua obra e comeu um dos biscoitinhos que não usara.
Quando
chegava a noite a casa de repouso era apenas guardada por um vigia na portaria,
enquanto na base da enfermaria ficavam duas enfermeiras de plantão.
Ivo
abriu a porta de seu quarto e inspirou fundo. Passou pela enfermaria e a
enfermeira chefe de plantão, como um cão farejador, levantou seu olhar e se
posicionou:
- Oi Seu Ivo. Pois não? Posso
ajudar o senhor?
Ivo então começou a gemer e
disse:
- Uh, minha filha. Gases, sabe?
Quando você chegar nessa idade, olha, uh... Você vai ver. Preciso de um pouco
de ar, pensei ir ao pátio, aaaai... Não estou conseguindo ficar no quarto,
sabe? Melhor jogar ao vento.
A
enfermeira chefe trocou um olhar com a sua colega de turno que lhe respondeu
com um olhar de Ok. A passagem de Ivo tinha sido permitida, foi gemendo até
metade do corredor que passava a enfermaria. Até chegar no quarto de Plínio.
Um
ronco forte dominava o recinto. Ivo até assustou de começo, mas não tinha tempo
pra hesitações. Apenas aproximou-se da cama e acordou Plínio, colocou a mão
sobre a sua boca para que não gritasse. Uma atitude impensada por parte de Ivo,
pois afinal, poderia ter colocado todo seu plano em risco e ter perdido um
amigo, caso Plínio tivesse sofrido um ataque do coração com o susto. Felizmente
nada disso acontecera.
- Acorda Plínio! Acorda meu
chapa! É hoje que vamos estourar a boca do balão.
- Tá louco, Ivo? Que coisa é essa
de vir me acordar essa hora? Não tomou seu Lorax, não?
- Plínio, você não está
entendendo. Essa noite vamos curtir, de verdade.
- Bobagem, Ivo. Você tem tomado
seu remédio pra ansiedade? Você me parece um pouco mais eufórico além do
normal, vou chamar a enfermeira e...
- NÃO! Plínio, você não entende.
Eu bolei um plano e hoje vamos sair desse lugar.
Ivo
então contou o que fizera nos últimos dias e finalizou:
- E agora, só falta eu dar esse
biscoito pro vigia, ele nem vai saber o que o atingiu. – disse animado.
- Olhe Ivo, tudo isso me parece
demais, não acho que o vigia vai cair tão fácil nessa.
- Bem, eu preciso tentar, ainda
que eu falhe, meu arrependimento será esse e não sobre não ter feito nada.
Plínio
coçou a cabeça por um momento e finalmente disse:
- Está bem, está bem! Mas olha lá
no que você vai se meter! Eu vou junto com você, mas tenho uma condição.
- Feito, qualquer coisa vale a
pena para escapar daqui.
Ivo
então disse a Plínio que ficasse no quarto até que desse o sinal de que estava
tudo bem. Dirigiu-se até a portaria e foi de encontro ao vigia.
- Boa noite. – o vigia ergueu seu
olhar. Parecia um pouco consternado, pois nunca antes tivera qualquer interação
com algum idoso ali.
- Boa noite. O senhor não deveria
estar no quarto?
- Pois deveria, mas a enfermeira
chefe me concedeu a gentileza de andar um pouco. Gases, sabe como é. Um dia
você vai chegar na minha idade, aí meu rapaz, se prepare. – disse Ivo, o mais
simpático que pôde.
O
vigia pareceu momentaneamente satisfeito com a resposta Ivo percebeu que ali
era sua chance.
- Poxa, mas aqui é bem quieto,
não?
- É, aqui eu geralmente fico
sozinho até que os vigias da manhã cheguem, mas eu tenho meu radinho aqui, que
me faz companhia.
De
fato tinha mesmo, o rádio sintonizado na Gazeta FM tocando as mais pedidas.
- Eu estou com fome. – constatou Ivo.
– Aceita um biscoitinho?
Antes
que o vigia pudesse recusar Ivo já avançara para cima do vigia com o seu
biscoito batizado, enquanto tirou um outro do bolso, sem alterações. Deu uma mordida e
começou a comer. Para que sua farsa não fosse descoberta, soltou alguns puns.
Para
que não parecesse má educação o vigia pegou o biscoito que Ivo lhe dera e começara
a comer junto, afinal sua mãe lhe ensinara bem a respeitar os mais velhos.
Ivo
arregalava os olhos a cada mordida que o vigia dava no biscoito, enquanto Ivo o
entretia sobre um causo de uma chapa de pulmão da época em que fora fumante.
Encarando
os olhos do vigia, Ivo podia ver que piscavam cada vez mais. Não tem coisa que
dá mais sono que uma boa história de exame e alguns remédios para dormir. O vigia
tentava reagir, mas a última coisa que pôde ver antes de apagar foi o sorriso
de Ivo.
Assim
que o seu carcereiro adormecera não perdeu tempo e pegou o molho de chaves em
cima da mesa, então Ivo foi para o quarto de Plínio. Tirou o roupão que vestia
por cima de uma calça marrom e uma camisa xadrez. Plínio não estava por baixo,
não. Também trajava seu melhor colete de lã.
- Eu lhe disse que conseguiria
Plínio, agora vamos!
- Espere, mas ainda tem a minha
condição. – Ivo quase a esquecera. – Temos de passar para pegar o Inácio para
ir conosco.
- Puta merda Plínio! Você só pode
estar de sacanagem!
Inácio
já não podia mais andar e dependia de uma cadeira de rodas.
- Pode me dizer como pretende
fazer com o Inácio, Plínio? – disse Ivo tentando conter ao máximo seus nervos.
- Escute, eu não posso deixar o
pobrezinho e afinal de contas ele fazia parte da nossa gangue, Ivo! A gente
deve isso a ele.
- Está bem! Mas se ele nos
atrapalhar, juro que o deixo para trás.
Ivo
e Plínio irromperam os corredores da casa de repouso guiando Inácio em sua
cadeira de rodas. Célia, que era vizinha de quarto de Inácio, ouviu toda a barulheira
e surgiu à porta. Então viu Plínio e Ivo com Inácio.
- O que vocês, rapazes, estão
fazendo fora da cama? E por quê estão com o Inácio? Inácio, você está bem,
querido? Alguém pode me explicar? – despejou Célia, suas palavras pela dentadura. Plínio então veio à frente.
- Celinha, olhe, não temos tempo!
Mas estamos indo para a melhor noite de nossas vidas! Venha. Venha conosco.
- Ora, mas que bobagens são
essas? O que está...
- Escutem, estamos ficando sem
tempo. Logo mais a enfermeira chefe irá suspeitar que eu não voltei para o meu
quarto. É agora ou nunca. Partimos ou então vou sozinho em minha jornada.
Sem
entender nada Célia sorriu, infelizmente ali ninguém pôde dizer se estava
animada ou preocupada, de fato. Mas colocou o primeiro vestido que achou e
acompanhou os três.
E
assim Ivo, Plínio, Inácio e Célia passaram pelo vigia que dormia sonoramente e
saíram porta a fora da casa de repouso.
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