Quilo dos Barrocos, O
A
nossa história começa muito antes da grande era onde as pessoas podiam pedir
comida através de seus telefones espertos(smartphones).
O
dia estava ensolarado e fazia muito calor, não se podia ver uma nuvem no céu.
As pessoas levantavam de suas camas, tomavam seus banhos, bebiam seus cafés e
saiam de casa para poder torrar no Sol.
Ainda
pela manhã, as pessoas checavam seus telefones com notificações de redes
sociais engraçadinhas com mensagens sobre novas estações, como “EutonoInferno”,
e sobre o quanto estaríamos danados (fudidos, se você preferir) se o segundo
Sol da Cássia Eller chegasse.
Eu
saí de casa, pronto para a batalha! Algo me avisava sobre um dia desafiador.
Cheguei
ao ponto de ônibus e esperei pela minha carruagem, lá já se encontravam algumas
senhouras bojudas, calçando sandálias, e se abanando com grandes pastas de
exame médico, meneando suas cabeças procurando a primeira vítima do dia. E
aquela vítima seria ninguém menos do que eu.
Tentei
achar um pedacinho de sombra, que por meu azar, era bem do lado de uma dessas
senhouras, hoje sei o porquê ninguém quisera aquele oásis, pois na verdade não
se tratava de uma ilusão.
-
Ai, mas tá tão calor e esse ônibus não passa. – disse a senhoura dirigindo a palavra a minha pessoa.
Eu
estava usando fones de ouvido, em geral, para algumas pessoas esse é um sinal
claro de quando não queremos conversar, mas aquelas víboras são treinadas! Têm
aqueles olhinhos de vó, começam conversando com você sobre nada e quando você
se dá por conta já as está acompanhando para o médico. Mas de qualquer forma
mamãe me ensinara bem a prestar atenção quando alguém falava, eu tinha a marca
de uma chinela para me lembrar, então tirei meu fone, estendi meu pescoço e
disse:
-
Oi?
-
Esse calor e esse ônibus que não passa. Uma falta de respeito com a gente.
-
Nossa, verdade. Mas essa linha é assim mesmo. – acusei em vão, pois na verdade
eu nunca reparara nisso.
-
Eu já tô ficando atrasada pro meu médico.
-
É, depois a gente atrasa e eles não atendem a gente, né?
Eu
não entendia onde aquela conversa iria chegar, mas de certo eu sabia que eu
gostaria de voltar a ouvir The Best of Cher no meu celular.
Antes
que a senhoura pudesse dizer mais alguma coisa o ônibus passou, finalmente eu
poderia voltar a ouvir minha música tranquilamente.
Como
de costume, assim quando o ônibus para, um pouco antes já se forma uma
aglomeração de idosos, que se movem em bandos em direção à porta, hoje não foi
diferente. Após esperar que eles entrassem, entrei eu. Já estava com meu fone
de ouvido e Cher soltava seu poderoso DO YOU BELIEVE IN LIFE AFTER LOVE?, ah,
que voz.
Assim
que passei pelo portal pude ver que o ônibus encontrava-se um pouco cheio, mas
passei pela guarda giratória e fui em direção ao fundo do ônibus.
Bem
ao longe, afinal era um biarticulado, vi alguém me acenando. Não podia ser, era
a senhoura! Puta merda.
Confesso
que fiquei constrangido em ignorá-la e fui ao seu encontro.
-
Vem cá menino, me dá a sua mochila, eu levo ela pra você.
-
Ah, obrigado. – risos nervosos.
-
Então como eu tava te falando, eu tenho uma filha que ela casou faz pouco
tempo. E eu já sou viúva a mais de 5 anos, então agora eu moro sozinha. E você
sabe que nessa idade a gente ficar sozinha não é muito bom, né?
Vou
acenando com a cabeça. E a história continua.
-
... dai foi assim que eu tive que fazer o primeiro enfisema...
Acenos
contínuos de cabeça.
-
... e meu marido ainda era vivo nessa época, eu vivia falando pra ele: Ai bem,
vai fazer o exame da próstata...
Eu
acenava a cabeça feito aqueles cachorrinhos de resina vendidos no farol.
-
... e daí a minha perna foi inchando, inchando e comecei a ter as varize...
Eu
já estava entrando num estado em transe pseudo psicossomático onde eu passava a
sentir algumas das dores daquela senhoura. De repente senti uma necessidade
tremenda de parar na farmácia mais próxima e comprar remédio pra artrite. Mas
que isso? Eu nem tenho artrite.
Por
minha sorte, e acho que foi Deus, a senhoura teve um acesso de
tosse. Acordei do meu transe e via que meu ponto se aproximava. Antes que ela
pudesse se recuperar dei o sinal e peguei a minha mochila e saltei do ônibus
assim que ele abriu as portas. Liberdade.
Cheguei
no trabalho e como de costume fui bater um papo amigável com o porteiro.
-
E ai rapaz! E o jogo ontem? A coisa foi feia pro nosso lado, hein?
-
Ah, aquilo foi uma pôca vergonha! Até eu jogo melhor do que aquilo.
O
que viera a se tornar uma verdade, alguns anos depois perdemos um grande
porteiro, mas o Brasil viera a ganhar um grande jogador.
Subi
para o andar da firma, cumprimentei alguns colegas e fui para a minha mesa.
Abri a minha mochila para pegar a minha marmita e guarda-la. Para o meu horror
só pude encontrar ali uma blusa, um guarda-chuva velho e meia garrafa d’água.
NÃÃÃÃÃÃÃÃO!
E a marmita era mó boa, meu!
Derrotado
e com uma forte dor no peito sentei em minha cadeira, saboreando o amargor daquele
momento.
Até
mesmo o Sol parecera sentir a minha dor, pois percebi que até o dia ficara mais
escuro.
A
manhã foi passando e com ela veio o meu desespero. Onde eu iria comer? O que eu
iria comer? E onde eu poderia comer com R$ 15?
Logo
o assunto almoço era o tópico no escritório. 11h50 e já era possível sentir o
cheiro de marmitas sendo requentadas pelos mais famintos e apressados. Povo que veio da roça, pensei.
Um
grupo de pessoas se formara e eu ouvi qualquer coisa sobre um quilo barato.
Essa era a minha chance, agarrei-a como um último sopro de vida.
-
E aí galera? Cês tão falando de ir no quilo? Que quilo que cês vão?
Fui
recebido como um irmão de longa data dentro daquele grupo de comensais.
-
Fala Ju, meu rapaz! Então, tamo combinando de ir num novo quilo que abriu por
aqui!
-
Opa, já é! Quando cês forem, ai cês me falam.
Voltei
para a minha mesa e aguardei pelo momento em que o grupo debandaria para o tal
quilo novo.
Não
demorou muito e finalmente recebi o chamado da turma (se você é
entrosadinho, leia-se tchurma) e fomos todos em direção ao quilo. No meio do
caminho até perguntei sobre o menu servido e disseram que era muito bom, tinha
uma pegada mais natureba. Preocupação. Mas eu já tava lá, né? Tá na chuva é pra
se molhar.
Andamos
por uns 5 minutos até que chegamos ao tal restaurante. De cara fomos recebidos
por um rapaz de longas madeixas, faixa na cabeça, roupas floridas e que usava
óculos escuros, mesmo que dentro do estabelecimento não batesse Sol.
-
E aí pessoal? – disse com uma voz alongada e grave. – Já conhecem a casa?
A
galera não se deu conta, mas eu tava vendo que alguma coisa tinha de errado.
Habituados
àquele ritual de filas, cada qual já se organizou em uma fila indiana. Eu fui o
último na fila.
Antes
que se pudesse ter acesso ao bifê (buffet), passávamos por uma longa mesa
terra-alaranjada com uma pequena disposição de copos plásticos e uma garrafa
térmica que apenas dizia Chá. Vi que todos que passavam por lá tomavam um pouco
daquele chá, mas eu não era bobo e perguntei primeiramente se aquele chá era
cobrado. Em segundo perguntei que sabor era o chá. O atendente não pareceu ter
má vontade, mas não sabia explicar muito bem do que era o chá, mas tinha a ver
com algum Santo e o chá fazia bem pro corpo e pra mente. Pensei: Ah, quer
saber? É de graça mesmo, tacale pau. Peguei um copinho e tomei o chá. Enquanto
ainda não chegava a minha vez de me servir, reparei nas paredes do lugar: uma
imensa gama de vasos de plantas penduradas em um paredão laranja. Do outro
lado, utensílios antigos de cozinha, colheres de pau, tachos e pratos de bronze
pendurados. Ornamentos feitos no barro.
Logo saquei que se tratava de um lugar único, diferente, barroco!
Eu
não sei se era pela demora das pessoas se servirem ou o tamanho da fila, mas eu
sentia que a minha fome avançava para além do normal. No bifê (buffet) meu
olhar ia de encontro as travessas, buscando o arroz, o feijão e aquela carninha
esperta. Mas não pude notar nada disso lá e isso ficava mais evidente à medida
que eu me aproximava.
Eu
não sei ao certo o que estava se passando, mas as travessas pareciam cheias de
folhas verdes, grãos, um arroz que não parecia arroz e um feijão tão branco que
parecia que tinha sido lavado até perder sua cor.
Não
aguentei e cutuquei meu colega à minha frente.
-
E ai parça? Então, cadê aquelas carninha marota?
Ele
me olhou com uma cara de deboche que até hoje me assombra.
-
Que carninha, o quê, cara? Isso aqui é um restaurante vegano! Ixi, nem deixa os
cara ouvir cê falando em carne aqui. – virou rindo.
Agora
tudo parecia fazer sentido! As cores, a decoração, o cara na recepção!
Então
eu olhei ao meu redor e me culpei, me culpei e martirizei por não ter notado
antes. Cartazes de vaquinhas segurando plaquinhas “Não sou comida, sou amiga.”.
Pessoas magras e de rostos pontudos, comendo aquela comida, quase como parte de
um ritual. No prato de meus amigos eu não podia enxergar nada além de salada,
cubinhos brancos, gergelim preto e chia. Aquilo era um pesadelo.
Depois
que eu tomara aquele chá, tudo estava meio confuso, meio enevoado.
Meu
colega virou-se para mim e perguntou se eu estava bem, mas ele não era mais o
meu colega. Era um chefe apache me estendendo a mão. Como eu estava um pouco
cambaleante resolvi aceitar a ajuda. Ni qui que eu peguei a sua mão várias
imagens se passavam, como um rolo de filme na minha frente.
Eu
via um jovem índio com uma gazela, ele passeava pela floresta com ela. A cena
mudou e o jovem índio parecia caçar. Agora eu era a gazela. Eu encarava o
índio, este com uma longa trança tocando flauta junto a um grupo musical em
meio a uma comunidade japonesa. De repente eu não era mais uma gazela, eu era
uma árvore, parada no meio de um grande campo, ao meu redor, apenas o vento e a
grama. Eu estava sozinho sem poder me mover. Caminhões. Machados. Branco. Eu
era um barquinho, fui colocado na água, dissolvi. Ararinha! Eu era uma ararinha. AAAH! AAAH! Voei! Flecha! Caí. A grama me furava, eu era a terra. Cimento.
Tudo
escuro.
Seria
aquele o meu fim?
Aos
poucos minha vista foi clareando e eu podia ouvir uma grande quantidade de
vozes ao meu redor. Tudo ainda estava um pouco confuso, mas eu me dera conta
que eu estava ainda no restaurante e encarava as pessoas de baixo pra cima.
Estava deitado no chão.
Então
de um susto eu levantei e disse:
-
Esse chá!!! Esse chá me deixou doidão! Cara eu pirei muito, eu viajei muito! –
procurei o meu colega. – Eu me lembro de você perguntando se eu tava bem,
depois cê virou um índio, depois eu era uma gazela e daí um barquinho de papel
e dissolvi na água...
As
pessoas me encaravam como se elas mesmas não tivessem passado por tal
experiência ao tomar aquele chá. Mas eu sabia que elas, no fundo, sabiam do que
eu estava falando.
O
atendente veio correndo até mim pedindo que eu me acalmasse e que ele
explicaria tudo. Ainda desconfiado do que ele poderia fazer depois que me
induziu a tomar aquele chá, aceitei o convite de me sentar a uma mesa. Eu
sentia uma leve dor de cabeça agora e uma pontada no cocuruto, coisa que o
atendente me explicou ser por conta de um dos vasos pendurados ter se soltado
do suporte e caído na minha cabeça.
Eu
quis negar e falei do chá e de como ele me fizera dar uma trip boladona, o
atendente não sabe o que podia ter acontecido, já que o chá era apenas um chá
comum de erva-de-são-joão e que ele apenas teria um efeito calmante.
Enganado
ou não, com chá ou não. Eu fizera uma viagem espiritual dentro daquele
restaurante barroco. Eu sabia que não pisaria lá de novo, mas sempre tive uma
tórrida curiosidade em descobrir os segredos daquele lugar.
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