O linguado - Uma história sobre traição e reencontro


Quando ainda um pimpolho, eu frequentemente ia à casa dos avós. 

Criança roliça, bojuda, gostava de comer e não fazia desfeita quando o assunto era comida.

Certa vez minha avó fez um bolo de chocolate, ao qual esperei pacientemente que ficasse pronto, enquanto conversava com minha avó na cozinha. 

Assim que o bolo ficou pronto, ainda quentinho, passei uma boa quantidade de manteiga. 
Ao passo que a mesma sumia, eu passava mais e mais. 

Sempre de forma saudável, todos os sábados, religiosamente, era dia de peixe na casa dos avós
E nada mais, nada menos que o sempre esperado linguado empanadinho e frito. 

Mal chegava meio-dia e meu avô já queria saber se o almoço estava pronto. Se servia de arroz no prato e ficava à espreita do primeiro peixinho que fosse frito. 

Pode causar-lhe estranheza, mas era com muito gosto que meu avô e o resto da família, saboreávamos o linguado empanado.

Por muitos anos a tradição se seguiu até que subitamente resolveram fazer uma substituição. Um dublê de corpo, mas que quando chegávamos perto podia-se ver muito bem sua real natureza. 

Naquele sábado choveu! O céu chorava com os acontecimentos que viriam a seguir. 

Meu avô saiu com a minha madrinha rumo à feira, como sempre faziam. Antes das 10h já estariam de volta com a provisão. Mas naquele dia algo mudou, um feirante cruel e sem coração, não quis perder uma boa venda. Meus familiares chegaram à sua barraca, mas lá foram surpreendidos de que o linguado acabara, mas que se eles quisessem poderiam levar a pescada branca por um preço mais em conta.

Maldita pescada branca, se fazia passar por linguado, mas quem sabe, sabe. 

O linguado é inconfundível!

Voltaram da feira, como se nada tivesse acontecido. Dissimuladamente, minha madrinha preparou o almoço e não disse nada a ninguém. Quando nos reunimos todos a mesa, fomos cada um nos servindo. Vi um filézinho e ele me encarava de volta, só pensei: É hoje. Um filé lindo do linguado, é o que eles queriam que eu pensasse.

Me servi do peixe e como manda o figurino peguei um dos gominhos de limão e espremi por cima. Adoro comer um peixe com um limãozinho e fazer aquela careta chupada depois. 

Levei o peixe à boca, mas algo não estava certo. Mastiguei e mastiguei. Provei mais um pedaço. Chomp. Algo errado não estava certo. Aquilo não tinha gosto de linguado.

Perguntei então se aquele era linguado e minha madrinha no alto de seu escárnio, mentiu para mim e disse que sim. Comi o peixe, sabendo que alguma coisa estava errada.

Sábado seguinte: a mesma cena se repetiu. 

Eu já estava num misto de transtorno e confusão e chamei meu avô para uma conversa em particular. Disse:

- Avô? Preciso lhe falar.

Então fomos conversar, acho que a verdade estava correndo dentro de seu âmago, pois ele finalmente me revelara a verdade sobre a identidade daquele FALSÁRIO. 

Eu sabia! Conhecia o gostinho dos dois. Êta menino danado.

Por muitos anos fiquei na saudade de um linguadinho. Nunca aprendi empanar, talvez devido a um trauma adquirido por toda essa barafunda. 

Mas hoje no dia 09/06/2016, agora já um rapaz feito, fui almoçar no restaurante por quilo.

E lá encontrei uma bandeja com uma inscrição que viria a mudar o rumo das coisas, dizia "Linguado Empanado".

De início eu não acreditei, é claro. Perdi boa parte da minha capacidade de confiança, mas pensei e suspirei. Oh, por que não? Então me servi de uma porção do peixe.

Assim que o levei a boca fui às lagrimas! Assim como num reencontro organizado por programas de TV, eu finalmente havia reencontrado a felicidade. Eu podia ver outras pessoas emocionadas ao meu redor, talvez perplexas demais para poderem vir me dizer alguma coisa. Mas isso não importava.

Era eu e o linguado contra o mundo.

Infelizmente nem tudo são flores. Escrevo este relato a caminho do P.S., meu caros.

O danado do peixe tinha um espinhão que me passou desapercebido.

Muitas vezes a felicidade é tanta que machuca.

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